ILSI em Foco – setembro/2021 – Entrevista

O que eu tenho a ver com aquilo que me mobiliza?

Recorrer à medicalização pode ser necessário em certos casos, mas olhar para dentro de si é inevitável, sempre.  

Os profissionais de saúde psíquica estão com as agendas lotadas. Angústia, náusea, taquicardia, falta de perspectiva são algumas das queixas relatadas por crianças, adolescentes e adultos, desde que o novo coronavírus nos obrigou ao isolamento social em 2020. Neste longo período de restrições de convívio, sem data marcada para acabar, também houve uma ressignificação do entendimento da saúde mental por parte da sociedade. A respeito disso tudo e de que maneira podemos acolher pessoas que estão vivenciando o sofrimento psíquico, o ILSI em Foco conversou com Gabriela Malzyner, Mestre em Psicologia Clínica e docente da formação em psicanálise e coordenadora do Núcleo de Infância e Adolescência do CEP-SP.

IB: Quais são as queixas mais comuns na clínica em crianças e adolescentes? Como elas se manifestam e quais são os sinais mais importantes?

GM: O que eu tenho observado, talvez devido à pandemia, são as crianças ficarem bastante angustiadas e aflitas, bem como os adolescentes. A impressão é de que estamos vendo o final de um túnel, mas que ele ainda não acabou. As queixas observadas nas crianças são um rebote do período vivido, as mesmas queixas que eu pude acompanhar durante o isolamento. A falta de perspectiva do momento em que o túnel vai de fato acabar tem causado ansiedade, mal-estar, angustia, e com isso vem elementos de depressão, o que é possível observar tanto em crianças e adolescentes como também nos adultos, pois eu não acho que a queixa esteja posta somente na infância. Muitos elementos ficaram acirrados, elementos que são pertinentes ao que já éramos cada um de nós. Ninguém mudou, ninguém virou outra coisa na pandemia, foi a sintomatologia que estava presente em cada um de nós que eclodiu. Tornou-se bomba aquilo que tinha potência para explodir. O que temos visto com alguma frequência, em adolescentes e adultos, foram as queixas suicidas. E isso foi algo que me chamou muito a atenção nesse decurso. Na minha clínica e na de colegas, as queixas pararam de ocupar o campo apenas da palavra, de algo esvaziado, para ocupar o campo da atuação. Vivi junto das supervisionandas, tentativas bastante concretas no campo do suicídio, acompanhando desde casos de pacientes que chegaram à beira de abismo até pacientes que se suicidaram. O que acaba impactando a clínica do profissional supervisor, porque nós vamos nos tornando receosos e preocupados com o que estamos produzindo como sociedade, e a forma como a sociedade não está produzindo garantias no campo da saúde mental. Está cada mais claro que a pandemia atravessou a todos nós num lugar muito delicado e sofrido em relação à perspectiva de futuro.

 

IB: A senhora trouxe o ato final como consequência de um adoecimento psíquico. Além dos sintomas manifestados por meio da palavra, de que modo os sintomas se manifestam no corpo?

GM: Os sintomas no corpo aparecem nas crises que podemos chamar de ansiedade, de angústia. São normalmente experiências de mal-estar físico. Eu suponho que nos consultórios de gastroenterologia também devem ter aumentado as demandas, pois muita gente traz queixa de náusea, diarreia, vômito, sustentados por crise de ansiedade e crise de angústia, e ainda queixa de desamparo, desânimo, sonolência, desinvestimento na vida, a impossibilidade de encontrar uma perspectiva para si mesmo. E para nós, como sociedade, eu acho que esse é o impacto daquilo que como coletivo precisaríamos produzir diferente, encontrar uma perspectiva social para sair disso tudo. E aí, e agora, o que nós fazemos depois de tudo?

 

IB: Na clínica vem sendo discutida a construção dessa sociedade para acolher esse sujeito na pós-pandemia?

GM: Algo que sempre foi muito falado dentro da psicologia, e que eu acho uma temática muito importante, é sobre a necessidade da construção de rede. Porém não somente da rede multiprofissional. Eu me lembro na época da faculdade, nós falávamos muito de equipes multidisciplinares, e isso já é basal hoje, trabalha-se em equipe multidisciplinar e ponto. Uma vez que os saberes ficaram muito específicos e nós precisamos da troca. A construção da rede ao qual me refiro está relacionada ao funcionamento da cidade, aquilo que ela proporciona, às escolas. Ficou muito evidente a importância da escola no campo da saúde mental. Muitos autores psicanalistas falam do quão fundamental ela é e do quão fundamental é essa apresentação e essa sustentação do sujeito fora do âmbito familiar, para se experimentar no campo social, buscar um jeito de se inserir no coletivo, de se haver com as frustações que o coletivo porta, nesse lugar menos idealizado que o campo familiar, e menos neurotizado, menos angustiado pelas neuroses familiares. Esse sempre foi um lugar importante muito sustentado pela psicanálise. Obviamente aqui o tema se abriria para uma conversa importante acerca das especificidades de uma escola que poderia proporcionar esse campo, mas que não necessariamente acontece no modelo atual. De qualquer maneira, eu acho essa uma preocupação que as próprias escolas começaram a levantar; de que modo ela funciona feito rede de sustentação. Não adianta só falarmos de conteúdo, temos que falar do sujeito que está lá, quem é ele e como se articula.

O isolamento social e afetivo teve um impacto enorme nas crianças. Ficou muito evidente que somos seres sociais. E aí sim, há algo que já estava sendo pensado na clínica: de que forma nos articulamos como sociedade e como pessoas que têm escuta e amparo para o outro? Além disso, de que modo articulamos a sustentação de nós mesmos? Ou seja, desde o profissional da área de saúde mental, que faz supervisão e vai buscar uma rede de ajuda para pensar as questões clínicas, passando pelos campos da escola e das famílias isoladas, até o isolamento emocional vêm sendo pensado na clínica. Me lembro no início da pandemia, ou no meio, quem sabe, de um texto do Julián Fuks em que ele dizia: “bom, se tiver uma segunda onda, que a gente possa se organizar diferente, que as famílias não precisem ficar isoladas no seu núcleo, mas que possam ficar isoladas nessa forma expandida.” Acho que isso nos diz sobre a necessidade do coletivo de fato.

 

IB: Voltando aos sintomas, de que maneira os pais, cuidadores ou todos nós podemos agir frente o reconhecimento desses sinais, em crianças, adolescentes ou qualquer pessoa do nosso entorno?

GM: Essa pergunta me fez lembrar do meu trabalho na França, onde morei por um ano, atuando num Hospital Dia para adolescentes, um modelo de hospital que eles passam o dia. Lá, havia uma característica que não conhecemos aqui no Brasil, que é a função de escola também. Os adolescentes tinham as atividades terapêuticas, além das atividades escolares dentro desse centro. E uma questão muito falada era sobre o cuidado ocorrer desde a portaria até o terapeuta individual dessa criança e adolescente. Isso é um olhar social para o outro, é a possibilidade de poder olhar para as pessoas que estão ao nosso redor e, de alguma maneira, entender que os laços se dão nesse entorno ampliado. Não se trata de dizer para os pais que eles têm que olhar e cuidar. Trata-se de compormos uma rede de cuidado e atenção para que essa criança fique menos desamparada assim como os pais dela. Porque eles estão sendo completamente bombardeados por formas ideais da maternidade e da paternidade, e ao mesmo tempo estão cada vez mais desamparados nessa função. Então nós temos que ampliar. Antigamente a rede era composta pela avó que morava junto, pela tia que vinha ajudar. Agora nós nos vimos muito isolados como família, tendo que dar conta de demandas que são impossíveis de dar conta no núcleo familiar. Nós precisamos do outro, precisamos da sociedade para dar conta.

 

IB: Em relação às queixas, é possível medir e fazer um comparativo do que têm se apresentado na clínica entre o período anterior à pandemia e o início do isolamento até os dias atuais?

GM: Saiu até um artigo num grande jornal, recentemente, dizendo que a demanda dos consultórios de psicólogos cresceu 450%. Nós vimos isso na clínica, os consultórios lotados sem que déssemos conta da demanda que vinha. Porque parou de se falar da saúde mental como um campo abstrato para sofrer claramente disso.  E ficou entendido que tem recurso para isso, que podemos pedir ajuda, que não estamos desamparados, visto que existem profissionais pensando a respeito. As pessoas entenderam que não há vergonha no sofrimento psíquico e que sofrimento psíquico precisa ser acolhido, cuidado e trabalhado. O sofrimento saiu do lugar mistificado, em que a saúde mental ocupava o campo da loucura – ainda muito arcaicamente herdado pelos antigos manicômios, da loucura na qualidade de um lugar de afastamento, de exclusão social – para um lugar onde o sofrimento psíquico foi legitimado. Entendemos que precisamos nos haver com ele e cuidar dele. Para mim talvez esse seja o maior ganho da pandemia.

 

IB: No que se refere aos cuidados, o atendimento clínico não alcança a todos, infelizmente. Existe outro modo possível de acolher alguém vivenciando um sofrimento psíquico – criança, adolescente ou adulto – que não seja a clínica?

GM: A primeira coisa invariavelmente é legitimar os afetos; entender que somos constituídos por um campo racional, por um campo daquilo que sabemos sobre nós mesmos e também por um campo do desconhecido que nos habita. E, portanto, é necessário legitimar que os afetos têm a intensidade deles, os destinos deles e que temos, muitas vezes, desejos ambivalentes dentro de nós. Logo eu quero e não quero a mesma coisa, eu quero e morro de medo dela. Precisamos legitimar essa complexidade da subjetividade humana sem querer rechaçar nenhum elemento como se fosse proibido. Também podendo fazer conversa, pois a potência da clínica é no campo da conversa. Não há nada que produzimos que não seja isso. Estamos o tempo todo legitimando a palavra, legitimando o afeto, legitimando os sentimentos e pondo em conversa aquilo que fica muito no campo da verdade absoluta. Então sempre que algo tiver no campo de verdade absoluta, duvide, e legitime os afetos.

 

IB: Já que o acolhimento passa pelo lugar do não julgamento na clínica, talvez possamos incorporar isso na escuta do outro?

GM: Não se trata apenas de parar de julgar o que o outro diz, mas parar de julgar aquilo que eu digo para mim mesmo.

 

IB: Para finalizar, quais tratamentos costumam ser indicados para o paciente que recebeu diagnóstico de algum transtorno?

GM: Olhar para além do diagnóstico. Se estamos dizendo que parte fundamental é o não julgamento, essa coisa muito taxativa, de uma urgência diagnóstica é a contramão do que entendemos como uma potência clínica. O diagnóstico serve na medida em que podemos fazer conversa na rede multiprofissional, que eu possa dialogar com o médico, nutricionista, fisioterapeuta. No entanto, isso para o sujeito muitas vezes se torna uma amarra, em vez de se tornar uma possibilidade de ele olhar curiosamente para si mesmo. Tornar taxativo é atribuir ao médico a receita de bolo para sanar o meu mal. Isso me parece que, como sociedade, devemos pensar, uma vez que não é disso que se trata o cuidado com a saúde mental. Cuidado com a saúde mental não é diagnóstico e medicação. A medicação pode atuar como um grande auxiliar em muitos casos, mas só ela não dá conta. Dizer que o paciente sofre de um transtorno obsessivo compulsivo ou de um transtorno alimentar não resolve o problema dele. Pelo contrário, pode se tornar destino para o sujeito e engessar a possibilidade de ele se perguntar: o que eu tenho a ver com isso que me mobiliza?