Artigo: Matérias estranhas em alimentos

Matérias estranhas em alimentos

Autores: Maria Ap. Moraes Marciano, Laís Fernanda de Pauli Yamada, Márcia Dimov Nogueira, Núcleo de Morfologia e Microscopia

Instituto Adolfo Lutz

 

O que são e qual a sua função?

Considera-se matéria estranha qualquer estrutura não pertencente a um produto, que ocorre devido a condições ou práticas inadequadas na produção, manipulação, armazenamento ou distribuição dos alimentos, como as sujidades, materiais decompostos, areia, terra, vidro, parasitos, entre outras. As matérias estranhas podem ser macroscópicas, que são aquelas detectadas a olho nu por exame direto, ou microscópicas, detectadas somente com auxílio de instrumentos ópticos, por meio de técnicas analíticas específicas. A ocorrência dessas matérias estranhas atua como um indicador da qualidade higiênico-sanitária do produto. No entanto, a maioria das contaminações por matérias estranhas em alimentos é evitável a partir de um rigoroso controle de qualidade e com a adoção das Boas Práticas em todas as etapas da cadeia produtiva.

 

Qual a sua origem?

As matérias estranhas encontradas em alimentos podem ter a sua origem ainda no campo, por insetos próprios da cultura e outros animais do ambiente, como aves e roedores. Na etapa do armazenamento também podem ocorrer contaminações por pragas, como carunchos, traças, ácaros, pombos, baratas e roedores assim como pode haver a deterioração do alimento por fungos.

Contaminações incidentais também podem acontecer nos alimentos, como é o caso de fragmentos de objetos metálicos, plásticos, ou outros, advindos da quebra de equipamentos ou utensílios utilizados na indústria alimentícia.

Também ocorrem as contaminações naturais em produtos de origem animal, como os parasitos em pescados e produtos cárneos, advindos da fauna parasitária própria do animal, alguns deles de caráter zoonótico.

 

O que diz a ciência a respeito da sua segurança?

No Brasil, a ANVISA, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 623/2022 classifica as matérias estranhas como indicativas de falhas nas Boas Práticas ou indicativas de risco à saúde humana. As indicativas de falhas de boas práticas incluem as partes indesejáveis da matéria-prima; pelos humanos e de outros animais; areia, terra e outras partículas; contaminações incidentais e insetos próprios da cultura. Já as indicativas de risco à saúde humana abrangem os insetos carreadores de patógenos, como algumas espécies de formigas, moscas, baratas, barbeiros; roedores: rato, ratazana ou camundongo, inteiro ou em partes; parasitos humanos e objetos que possam causar danos à saúde do consumidor, como os objetos rígidos, pontiagudos e/ou cortantes, iguais ou maiores que 7 mm na maior dimensão; objetos rígidos, com diâmetros iguais ou maiores que 2 mm na maior dimensão; fragmentos de vidro de qualquer tamanho ou formato e filmes plásticos.

Embora a ocorrência das matérias estranhas deva ser reduzida ao máximo, algumas são consideradas inevitáveis para determinados alimentos, mesmo com a adoção das melhores práticas disponíveis. Considerando esse fato, a Resolução - RDC nº 623/22 estabeleceu limites de tolerância para alguns grupos de alimentos como frutas, produtos de frutas e similares, farinhas, massas, produtos de panificação e outros produtos derivados de cereais, café, chás, especiarias, cacau e produtos derivados, queijos e cogumelos. As matérias estranhas toleradas nesses produtos referem-se a algumas sujidades como fragmentos de insetos indicativos de falhas das boas práticas, fragmentos de pelos de roedor, bárbulas, exceto de pombo e ácaros, em quantidades variáveis de acordo com o produto. Para os produtos que não foram contemplados com limites de tolerância, mas que tenham alimentos destas categorias em sua composição, os limites devem ser calculados caso a caso, com base na proporção em que estão presentes no alimento. Para os alimentos em geral, independente da categoria, são tolerados 5 ácaros mortos na alíquota analisada, de acordo com a metodologia analítica preconizada.

Uma revisão da literatura científica sobre avaliações de ocorrências de matérias estranhas em alimentos, conduzida pelo Food and Drug Administration (FDA- USA), apontou que os objetos duros ou pontiagudos, de 7 mm ou mais de tamanho, foram considerados um perigo físico potencial para a saúde devido ao risco de laceração, perfuração, ferida e possível infecção secundária. Objetos de menor tamanho raramente causam trauma ou lesões graves, exceto em grupos de risco como bebês, pacientes cirúrgicos e idosos. Os objetos muito grandes normalmente não representam um perigo para a saúde, pois são fácil e prontamente detectáveis pelo consumidor.

O FDA se baseia na presença de sujidades e matérias estranhas em alimentos como um dos critérios para implementação de ações regulatórias e avaliação de adulterações de importância em saúde pública. Segundo estudos promovidos por esse órgão, 22 espécies de animais representam um risco de promoverem doenças transmitidas por alimentos, por serem veiculadoras de patógenos como Escherichia coli, Salmonella spp. e Shigella spp. e Staphylococcus spp. Essas 22 espécies foram divididas em quatro grupos e abrangem: quatro espécies de baratas, duas espécies de formigas, 12 espécies de moscas e quatro espécies de roedores. Sua presença é considerada um indicador de condições sanitárias inadequadas no processamento e/ou no armazenamento dos alimentos.

No Instituto Adolfo Lutz Central (IAL), Laboratório Central de Saúde Pública do estado de São Paulo, entre 2018 e 2023 foram realizados 2.242 ensaios de pesquisa de matérias estranhas macroscópicas e microscópicas em produtos alimentícios, com cerca de 8% de resultados insatisfatórios devido a presença de matérias estranhas não permitidas ou acima dos limites de tolerância estabelecidos na legislação. Dentre elas podemos citar os fungos filamentosos, insetos ou seus fragmentos, pelos animais, bárbulas de aves, ácaros, parasitos, objetos metálicos e plásticos, dentre outros, em uma grande diversidade de produtos (Figuras 1 e 2).

Entre os anos de 2008 a 2020, um levantamento realizado pelo IAL – SP verificou que a ocorrência de objetos rígidos, pontiagudos ou cortantes em alimentos foi de 1,2% (89/7221 amostras), com maior frequência para materiais plásticos rígidos e flexíveis (48%) como microtubo de laboratório, hastes flexíveis, fragmentos pontiagudos e/ ou torcidos, lacre de refrigerante e filmes plásticos. Metais, madeira, vidro, borracha, barbante; papel; fragmento de dente, fragmento de osso também foram detectados em alimentos diversos. Bebidas como cerveja e refrigerante foram os produtos com maior ocorrência (43%) dessas matérias estranhas.

Figura 1. Matérias estranhas indicativas de falhas das boas práticas obtidas de amostras de alimentos analisadas no Instituto Adolfo Lutz: A. micélio de fungo em produto de tomate; B. bombom deteriorado por inseto da ordem Lepidóptera; C. fragmentos de inseto; D. pelo humano inserido no biscoito; E. massa alimentícia infestada por inseto da ordem Coleóptera; F. ácaro; G. inseto inserido em biscoito; H. fragmento de pele bovina em hambúrguer; I. pelo de morcego; J. biscoito com sinais de infestação; K. dejeções de inseto em barra de cereais; L. chocolate infestado por insetos.

 

Figura 2. Matérias estranhas indicativas de risco a saúde obtidas de amostras de alimentos analisadas no Instituto Adolfo Lutz: A. cerveja com tubo plástico; B. inseto da ordem Díptera; C. fragmento de roedor em arroz; D. mola metálica inserida no biscoito; E. roedor em amostra infestada; F. parasito anisaquídeo em filé de peixe; G. fragmentos de barata em biscoito; H. fragmento de osso; I. parafuso em hambúrguer; J. boca de lâmpada em farinha de trigo e K. fragmentos de vidro em produto cárneo.

 

Quais os gaps no estado da arte?

No Brasil há poucos registros sobre a ocorrência de matérias estranhas na literatura científica, tampouco um sistema de notificação para essas ocorrências nos alimentos, ou mesmo para as injúrias causadas pelo consumo de alimentos contendo matérias estranhas. Normalmente, os consumidores que detectam alguma matéria estranha no alimento, ou sofrem lesão decorrente do seu consumo, procuram os canais de atendimento ao consumidor oferecido pela indústria. Há casos em que o consumidor aciona diretamente o poder judiciário para ser ressarcido dos danos moral e cível, gerando perícias laboratoriais para identificação da matéria estranha. Porém, a forma mais adequada para o registro e controle destas ocorrências são os canais de atendimento das prefeituras, onde a denúncia é protocolada e encaminhada as Vigilâncias Sanitárias correspondentes, gerando ações de inspeção e fiscalização na indústria e/ou comércio, além do monitoramento laboratorial do produto.

Países como Canadá, Estados Unidos e União Europeia, mantém sistemas de notificações e estatísticas desses registros, constituindo um banco de dados onde são conhecidas as categorias de alimentos envolvidas nessas notificações, além de outras informações importantes a respeito dessas ocorrências que envolvem a segurança alimentar. Esses dados podem auxiliar na implementação do sistema de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (HACCP) e na adoção das Boas Práticas pelas indústrias alimentícias, fundamentais para a prevenção e/ou minimização da contaminação dos alimentos por matérias estranhas, principalmente aquelas associadas a riscos à saúde humana.

A pesquisa cientifica contribui principalmente para a avaliação dos riscos à saúde associados a presença de matérias estranhas nos alimentos, porém, para isso é importante que essas ocorrências sejam melhor documentadas. Além disso, é necessário um constante aprimoramento das metodologias diagnósticas em relação as matérias estranhas capazes de causar doenças ou veiculadoras de patógenos, para a adequada vigilância dos alimentos, com vistas à proteção da Saúde Pública.

 

Referências

ANVISA/MS Resolução RDC nº 623 de 09 de março de 2022. Dispõe sobre os limites de tolerância para matérias estranhas em alimentos, os princípios gerais para o seu estabelecimento e os métodos de análise para fins de avaliação de conformidade. DOU, de 16 de março de 2022. Ed 51, Seção 1, pág 119.

Association of Official Analytical Collaboration (AOAC). International Official methods of analysis of AOAC International. 20ª ed. Rockville: Association of Official Analytical Collaboration (AOAC) International; 2016.

Food and Drug Administration. Technical Bulletin Number 5, Macroanalytical Procedures Manual. Washington DC: Center for Food Safety & Applied Nutrition, 1984. Disponível em: https://www.fda.gov/food/laboratory-methods-food/mpm-i-introduction#Definition

Mattos EC, Pauli-Yamada LF, Silva AM, Nogueira MD, Atui MB, Marciano MAM. Ocorrência de perigos físicos em alimentos. Rev Inst Adolfo Lutz. São Paulo. 2021;81:1-14,e37178.

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