ILSI em Foco – novembro 2020 – artigo

Quimiofobia – Medicamentos Veterinários

Susanne Rath, PhD, Professora do Instituto de Química da Unicamp

No nosso dia-a-dia estamos sendo bombardeados por um número enorme de informações, que vem de diferentes fontes: noticiários da TV, jornais, revistas, WhatsApp, Instagram, Youtube e tantos outros.  Além disso, existem muitas outras informações que são veiculadas através de propagandas, comerciais ou, com se dizia antigamente, reclames. Uma propaganda muito comum é de produtos para cabelo com os dizeres: “tenha um cabelo natural sem química”. Quase que desapercebidamente, essa propaganda transmite a mensagem de que química é uma coisa ruim, enquanto o natural é bom. É comum associar a ideia do “natural” ao sadio. Mas afinal, será que o cabelo natural não tem “química”? O que é química, afinal de contas?

Química é a ciência que estuda a matéria e suas transformações. Matéria é tudo o que se pode tocar, cheirar, sentir. Tudo no Universo é química: desde a composição das estrelas até um fio de cabelo. Se química é tudo, como ela pode ser tão ruim?

Estudos mostram que a mente humana tem uma maior capacidade de recordar episódios ruins do que experiências positivas. Então, apenas uma notícia mal veiculada (como uma propaganda de produtos para cabelo) pode gerar uma desconfiança em relação a uma ciência inteira. Mas a desconfiança com a química não se limita apenas a cosméticos. Existem um grande número de notícias sobre o uso inapropriado de produtos químicos nos alimentos. Isso gera uma constante procura por alimentos orgânicos (opa!!!, orgânico não é “química”?) por assumirem que estes estariam livres de compostos químicos e substâncias prejudiciais à saúde.  Tudo isso leva a uma sensação de que produtos químicos são prejudiciais, é o mal da atual sociedade, é a causa de todos os problemas que assolam nosso planeta. Esta visão atual da sociedade é o que podemos definir como quimiofobia.

Para ilustrar melhor o que é quimiofobia, vamos pensar em uma fruta secular como a maçã. A maçã é talvez a fruta mais antiga de que se tem notícia, um símbolo bíblico, que até na época de Adão e Eva já era cheia de “química”! Na sua composição encontramos carboidratos, açúcares, fibras, proteínas, vitaminas, minerais e muita água. As sementes contêm uma substância química denominada de amigdalina. Se comermos uma grande quantidade desta fruta com as sementes (em torno de 20), podemos ter uma intoxicação muito séria por conta da substância presente nas sementes. Isso pode acontecer com qualquer outro alimento se for ingerido em grande quantidade. Ou seja, mesmo os compostos naturais podem ocasionar um dano. Vale a pena relembrar a frase notável do médico suíço Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, mais conhecido por Paracelsus: “a dose faz o veneno”. Tudo pode ser prejudicial ao homem, e o dano vai depender de quanto ele consome.

E pensando em alimentos e consumo, o ser humano ingere diariamente, ao longo de toda sua vida, uma variedade de diferentes produtos incluindo produtos derivados de animais como carnes de frango, bovina ou suína, ovos e pescados. No ano de 2019, o consumo per capita de carne de frango foi de 42,84 kg/hab e de ovos 230 unidades/hab (1).  No Brasil existe um boi por habitante, o que equivale a 209 milhões de animais para atender o mercado interno e externo. Parece simples produzir tanta carne, mas de fato não é. Para que isso seja possível, é preciso de novas tecnologias no campo e de muitos medicamentos veterinários. Os animais, principalmente em criação intensiva (ou seja, em confinamento) são susceptíveis a diversas doenças e, assim como nós, precisam ser tratados. Precisam ser vacinados e algumas espécies de animais precisam ser medicados com drogas antiparasitárias para eliminar carrapatos e outros parasitas. Sem dúvida, para conseguir produzir carne suficiente para alimentar a população mundial e manter o bem-estar do animal, o uso de medicamentos é necessário, mesmo se tratando de compostos químicos. Mas isso gera uma nova pergunta: será que a carne proveniente de um animal tratado com medicamentos veterinários pode causar dano à nossa saúde? Será que estes medicamentos deixam algum resíduo químico na carne? Qual o risco que corremos ao ingerirmos esse alimento?

De fato, todo medicamento administrado ao animal representa um risco ao ser humano. Então precisamos nos lembrar do que dizia Paracelsus, e nos preocupar com a concentração destes resíduos no produto final. Se a concentração do resíduo for controlada, o risco proveniente da ingestão deste alimento, mesmo por toda a vida, é muito baixo. Logo, o estudo e controle de medicamentos veterinários é de extrema importância. Antes do medicamento ter autorização para ser usado em animais, este passa por uma avaliação de risco visando determinar qual o limite máximo de resíduo que possa estar presente na carne no momento em que o animal for abatido. A avaliação de risco é feita por uma série de testes em laboratórios, e os dados são avaliados por comitês científicos, que levam em consideração vários aspectos, incluindo a quantidade ingerida de cada alimento por dia e o efeito de cada medicamento no corpo humano.

O Brasil ainda não faz avaliação toxicológica de resíduos de medicamentos veterinários em alimentos, mas por ser membro do Codex Alimentarius adota os valores recomendados por este órgão para garantir a segurança dos alimentos consumidos no país. O Codex Alimentarius é um programa conjunto da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e Organização Mundial da Saúde (OMS) criado em 1963 e tem como um dos objetivos estabelecer normas internacionais na área de alimentos (2). O grupo assessor do Codex Alimentarius e que faz a análise de risco é o Joint Expert Committee on Food Additives, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação e Organização Mundial da Saúde (FAO/OMS)(3). Na avaliação de risco, são levados em consideração aspectos toxicológicos, biológicos, microbiológicos e também se a substância tem potencial genotóxico ou mutagênico. Todos esses estudos permitem definir uma ingestão diária aceitável (IDA) de um resíduo de medicamento veterinário presente no alimento, ou seja, um nível considerado seguro. A partir do valor da IDA e de estudos que indicam a eliminação do fármaco pelo animal é possível estabelecer um limite máximo de resíduo (LMR) na carne, ou seja, um valor de resíduo considerado seguro, que significa que se aquele alimento for consumido pela vida toda não irá oferecer efeito adverso à nossa saúde.

Depois de toda essa explicação, podemos nos perguntar de novo: existe um produto sem química? A “química” realmente faz mal? A resposta é negativa para ambas. Se o produtor fizer o uso correto dos medicamentos, respeitando a dose, forma de administração, duração do tratamento, e abater o animal no período correto após a aplicação do medicamento, teremos um nível de resíduo aceitável. Ou seja, se as boas práticas veterinárias forem obedecidas podemos continuar comendo nossa proteína animal sem preocupação. Atualmente, é muito fácil veicular informações falsas, propagar mitos, e criar um ambiente que leve a quimiofobia. Portanto, é importante que as nossas decisões sejam sempre baseadas no conhecimento e na ciência.

 

 

Referências

 

1.Associação Brasileira de Proteína Animal. https://abpa-br.org/mercados/ (acessado em julho 2020).

  1. ANVISA 2016, http://portal.anvisa.gov.br/documents/33916/388701/Codex+Alimentarius/10d276cf-99d0-47c1-80a5-14de564aa6d3. (Acessado em julho 2020).
  2. FAO, Chemical risk and JECFA. http://www.fao.org/food/food-safety-quality/scientific-advice/jecfa/en/. (acessado em julho 2020).