Desmistificando os Carboidratos


Desmistificando os Carboidratos

Os carboidratos sempre geram discussão; muitas vezes olhados com desconfiança, chegam a ser considerados vilões que devem ser banidos.

Na nutrição temos os macronutrientes – carboidratos, proteínas e lipídios – que são responsáveis por várias funções no organismo humano, especialmente para a produção de energia, que é a primeira necessidade de um ser vivo para sobreviver. Nosso cérebro precisa de glicose – um carboidrato simples (açúcar) – para funcionar adequadamente e quando este nutriente está escasso, começamos a ter fome e isso pode evoluir para tontura, fraqueza, náusea, sonolência – sintomas de hipoglicemia – decorrente da baixa glicose em circulação.

Para atender a necessidade cerebral é necessário ingerir pelo menos 130 g de carboidratos por dia (National Research Council, 1989); mas, além disso, precisamos de energia para exercermos as atividades diárias e para manter o metabolismo basal. Mesmo quando dormimos, o metabolismo basal consome energia para manter os batimentos do coração, a respiração, a temperatura corporal, o crescimento de cabelos e unhas, a renovação celular, por exemplo. Por isso é importante consumir de 225 a 325 g/dia para uma necessidade de 2.000 kcal (Institute of Medicine, 2005). Esse valor de energia é sugerido para uma pessoa adulta, de estatura média, que exerce atividade leve/moderada e não passa grande parte do dia sentada. Pode ser maior para homens ou pessoas que exercem atividades físicas mais intensas e menor para pessoas muito sedentárias.

Na falta ou baixa ingestão de carboidratos, as proteínas e lipídios podem fornecer energia, porém em processos mais difíceis, os quais poderiam sobrecarregar o organismo ao longo do tempo. Por esse motivo algumas pessoas acreditam que o carboidrato não é um “nutriente essencial”. Os carboidratos são armazenados sob a forma de glicogênio no fígado para garantir a glicemia e a atividade cerebral, e nos músculos o glicogênio armazenado é o “combustível” para a realização das atividades, inclusive os exercícios físicos (Adeva-Andany et al., 2016). A energia dos carboidratos consumidos preserva a massa muscular porque poupa as proteínas musculares que seriam quebradas para fornecer energia; a produção de energia a partir dessa quebra de proteína pode levar a uma sensação de fadiga muscular (Martínez Sanz et al., 2017)

Em dietas com restrição de carboidratos ou jejuns prologados, uma maior quantidade de lipídios (gordura) é ingerida e também a gordura corporal armazenada também pode fornecer energia, mas esse processo produz compostos chamados “corpos cetônicos”, que podem ser responsáveis por efeitos colaterais como dores de cabeça, fraqueza e mal hálito (com cheiro de acetona) (Cliff et al., 2019). Quando a produção de energia a partir dos lipídios se mantém por períodos longos, pode ocorrer alteração do cheiro da urina, constipação intestinal e acidificação do sangue. Em caso de restrição de carboidratos por tempo prolongado é importante ter acompanhamento profissional, uma vez que o excesso de corpos cetônicos na corrente sanguínea pode levar à desidratação, acúmulo ou perdas de minerais pelo organismo, e chegar ao coma em situações mais extremas (Diana,Atmaka, 2020).

Vale reforçar que, entre os três, os carboidratos tem um processo metabólico mais simples para a produção de energia, e os alimentos que os fornecem, como cereais, massas, tubérculos, têm custo muito menor que carnes, ovos, óleos e gorduras. Além disso, as diferentes fontes de carboidratos são associadas a outros compostos como vitaminas, minerais e compostos bioativos, que contribuem para manter uma boa nutrição Ludwig et al., 2018).[IB1][EB2][EB3]

A maior preocupação em relação aos carboidratos deve ser em relação à qualidade desse nutriente, porque sob a denominação de carboidratos está um número variado de compostos, desde os mais simples como glicose, frutose e sacarose – chamados açúcares – até aqueles que compõe a fibra alimentar (celulose, pectina, inulina, amido resistente, polidextrose, fruto-oligossacarídeos, entre outros).

A qualidade refere-se especialmente à classificação que separa os carboidratos em disponíveis e não disponíveis. Carboidratos disponíveis são aqueles capazes de fornecer energia e os não disponíveis (fibra alimentar) exercem importante função fisiológica na manutenção da saúde intestinal, incluindo a microbiota do cólon (maior parte do intestino grosso); algumas dessas fibras ainda podem fornecer um pouco de energia durante o processo de fermentação.

Entre os disponíveis, os carboidratos podem apresentar diferentes velocidades de absorção, e assim afetam a glicemia de forma variada (Ludwig et al.,2018).[IB4][EB5][EB6] Por exemplo, glicose, sacarose, maltodextrina disponível e amido disponível são rapidamente digeridos e absorvidos, elevando rapidamente a glicose no sangue. É o caso do açúcar de mesa, bebidas adoçadas (néctar de frutas, refrigerantes, chá e café adoçados); o pão branco, batata, fubá tem velocidade de absorção um pouco menor, mas ainda são considerados de rápida resposta glicêmica. Quando os carboidratos são rapidamente absorvidos, promovem a liberação rápida de insulina, a fim de evitar o excesso de glicose na circulação (hiperglicemia); quando não há mais glicose disponível, e ainda resta insulina na circulação, esse hormônio provoca fome (Ludwig et al.,2018).[IB7][EB8][EB9]

Há também compostos como a isomaltulose, que é completamente digerida, mas de forma muito mais lenta se comparada com a sacarose, e não eleva rapidamente a glicemia. Esse composto está naturalmente presente no mel e na cana de açúcar, mas em quantidade muito pequena; ele é produzido comercialmente a partir do açúcar da beterraba em um processo de biotecnologia com a ação de um micro-organismo que produz uma enzima que altera a estrutura da sacarose, e a transforma em um açúcar de digestão bem lenta (Sawale et al., 2017).

Cabe lembrar que o termo “carboidrato complexo”, frequentemente usado para o amido e a fibra alimentar não reflete a real digestibilidade dos carboidratos, porque há o amido resistente (uma fibra alimentar), que não é digerido e sim fermentado no cólon, mas há o amido disponível que é rapidamente digerido e absorvido, de forma similar aos açúcares mais simples. Parte do amido também pode ser digerido de forma mais lenta, dependendo do tratamento ou preparo (FAO, 1998).

Os carboidratos não disponíveis ou fibra alimentar, englobam compostos com diferentes características, porém nenhum deles pode ser digerido e absorvido. As fibras viscosas (pectinas, betaglicanos e gomas) podem retardar a absorção de glicose e assim reduzem a secreção de insulina, responsável pela sensação de fome. Os fermentáveis (amido resistente, inulina, pectinas, betaglicanos) produzem ácidos graxos de cadeia curta que podem reduzir a circulação de hormônios gastrintestinais podendo reduzir a fome, além de favorecer a absorção de alguns minerais. E todas as fibras são responsáveis por manter a saúde intestinal, por reduzir o tempo de trânsito intestinal, por evitar o contato com compostos tóxicos por muito tempo, por modificar a proliferação celular, e por favorecer o equilíbrio da microbiota intestinal (Giuntini et al., 2024).

No Quadro abaixo há alguns exemplos de quantidade de carboidratos disponíveis e fibra alimentar fornecida por alguns alimentos tradicionalmente consumidos

Por 100 g/alimento

Medida caseira

Carboidratos disponíveis

Fibra alimentar

Arroz, polido, cozido

5 colheres de sopa

29

1,20

Arroz, integral, cozido

5 colheres de sopa

21,4

2,13

Feijão, carioca, cozido (50% de grão)

3 colheres de servir

8

7,80

Feijão, preto, cozido (50% de grão)

3 colheres de servir

6

8,40

Pão francês

2 unidades

59

2,60

Macarrão, ovos, cozido

2 colheres de servir

26

1,02

Polenta

2 ½ colheres de servir

21

1,74

Purê de batata inglesa

4 colheres de sopa

12

1,27

Batata inglesa cozida

4 colheres de sopa

15

1,32

Batata doce cozida

4 colheres de sopa

26

3,17

Mandioca (aipim) cozida

2 ½ colheres de sopa

28

1,77

Biscoito, doce, simples

20 unidades

74

2,74

Laranja pera

½ unidade grande

7

1,36

Banana nanica

1 unidade média

20

1,70

Banana prata

1 unidade grande

24

1,95

Maçã fuji

1 unidade pequena

14

1,35

Abacaxi

2 fatias

11

1,12

Fonte: TBCA (2023).

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, os carboidratos são muito importantes na nossa alimentação e devem ser consumidos normalmente, mas devemos prestar atenção nas nossas escolhas – comer doces e bebidas adoçadas com moderação, sempre inserir fontes de fibra nas diferentes refeições: leguminosas, cereais integrais, vegetais folhosos, vegetais cozidos, frutas. É muito difícil ingerir somente alimentos de baixo índice glicêmico ao longo do dia, mas podemos sempre em pensar em associar alimentos com maior IG com outros de baixo índice glicêmico; por ex.:  arroz + feijão; banana + aveia; goiabada + queijo; pão com requeijão ou manteiga, etc. O importante é estar atento à escolha da qualidade dos alimentos fonte de carboidratos, assim como da quantidade ingerida, que está diretamente associada à atividade exercida e à características, como sexo e idade, por exemplo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Adeva-Andany MM, González-Lucán M, Donapetry-García C, et al. (2016). Glycogen metabolism in humans. BBA Clin. 27:85-100. doi: 10.1016/j.bbacli.2016.02.001.

Diana R, Atmaka DR (2020). Ketogenic diet for weight loss and its implication on health: A literature study. Media Gizi Indonesia, 15(3);184-193.

FAO/ WHO – Food and Agriculture Organization/ World Health Organization (1998). Carbohydrates in human nutrition: report of a joint FAO/WHO expert consulation. April 14-18, 1997, Food and Nutrition Paper, 66, Rome: FAO.

Giuntini, EB, Fabi JP, Menezes EW (2024). Fibra alimentar [livro eletrônico]. 3a. ed. São Paulo : International Life Sciences Institute do Brasil – ILSI Brasil, 2024. (Série funções plenamente reconhecidas de nutrientes). Disponível em: https://ilsibrasil.org/wp-content/uploads/sites/9/2024/06/Vol.-19-Fibra-Alimentar.pdf

Harvey CJDC, Schofield GM, Zinn C, Thornley S. (2019). Effects of differing levels of carbohydrate restriction on mood achievement of nutritional ketosis, and symptoms of carbohydrate withdrawal in healthy adults: A randomized clinical trial. Nutrition, 67-68S:100005. doi: 10.1016/j.nutx.2019.100005.

Institute of Medicine (2005). Dietary reference intakes for energy, carbohydrate, fiber, fat, fatty acids, cholesterol, protein, and amino acids. Washington (DC): National Academy Press.

Ludwig DS, Hu FB, Tappy L, Brand-Miller J (2018). Dietary carbohydrates: role of quality and quantity in chronic disease BMJ, 361:k2340. doi:10.1136/bmj.k2340.

Martínez Sanz JM, Norte A, Salinas García E, Sospedra I (2017). Branched Chain Amino Acids and Sports Nutrition and Energy Homeostasis. In: Debasis Bagchi (Editor) Sustained Energy for Enhanced Human Functions and Activity, Academic Press, Pag 351-362, ISBN 97801280541

National Research Council (1989). Recommended Dietary Allowances: 10th Edition. Washington, DC: The National Academies Press. https://doi.org/10.17226/1349.

Sawale PD, Shendurse AM, Mohan MS, Patil GR (2017). Isomaltulose (palatinose)–an emerging carbohydrate. Food bioscience, 18, 46-52.

TBCA – Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (2023). Universidade de São Paulo (USP). Food Research Center (FoRC). Versão 7.2. São Paulo, 2023. [Acesso em: nov.2024 ]. Disponível em: http://www.fcf.usp.br/tbca.