ILSI em Foco – março/2020 – Artigo

Whole-Genome Sequencing na segurança dos alimentos

Dra. Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco – Food Research Center, Faculdade de Ciências Farmacêuticas Universidade de São Paulo.

 

O Whole-Genome Sequencing (WGS), ou Sequenciamento Completo do Genoma, é a mais recente ferramenta empregada para investigar, avaliar e gerenciar as enfermidades microbianas transmitidas pelos alimentos. O WGS permite a identificação e caracterização precisa e rápida de microrganismos, permitindo ações rápidas sempre que surge um problema de natureza microbiológica. Devido ao custo gradativamente decrescente, essa ferramenta já vem sendo utilizada em muitos países nos programas de gestão da segurança de alimentos, melhorando a proteção dos consumidores e facilitando o comércio nacional e internacional. Apesar dos desafios que ainda persistem para sua ampla utilização, o WGS será, em curto espaço de tempo, a metodologia padrão para a identificação e caracterização das bactérias de interesse em alimentos.

Quando comparada aos vários outros métodos moleculares usados em microbiologia de alimentos, o WGS é relativamente simples: basta purificar o DNA microbiano, marcá-lo e sequenciá-lo, interpretando os resultados com o auxilio de ferramentas de bioinformática. O WGS permite a detecção do genoma microbiano completo, para uso no monitoramento dos alimentos, vigilância das enfermidades e investigação de surtos, mas também para a solução de outras questões críticas relacionadas com segurança dos alimentos, como rastreamento e identificação das fontes e vias de transmissão da contaminação e monitoramento das medidas preventivas.

Ë importante ressaltar que o WGS é apenas uma fonte de informação dentro do sistema complexo que constitui a cadeia do alimento. O uso eficiente do WGS depende da disponibilidade de cepas microbianas isoladas dos alimentos, do ambiente e de amostras clínicas, provenientes de análises, inspeção e vigilância, feitas de forma rotineira. Depende também da existência de infraestrutura suficiente para que os dados sejam interpretados e utilizados corretamente pelas instituições que atuam na segurança dos alimentos e na saúde da população. Dessa forma, a implementação do WGS deve estar acompanhada do estabelecimento de um sistema nacional integrado de controle dos alimentos e de programas de segurança de alimentos, para que dados de diferentes fontes possam ser integrados

A literatura científica destaca os seguintes benefícios da adoção de WGS no gerenciamento da segurança dos alimentos:

  1. Desempenho (especificidade/sensibilidade): O WGS fornece informações mais precisas que os métodos convencionais sobre os microrganismos patogênicos, porque informa a sequencia completa do genoma. Essa característica permite a conexão específica entre casos humanos e um alimento ou ambiente, fortalecendo as hipóteses das possíveis origens da doença.
  2. Custo: as análises por WGS podem ter custo menor que as análises convencionais necessárias para a identificação correta de um microrganismo patogênico.
  3. Rapidez: em uma instalação otimizada, os resultados do WGS podem estar disponíveis em poucos dias, em tempo menor que os métodos convencionais de tipagem microbiana. Além disso, o WGS dá informações mais detalhadas sobre os microrganismos, melhorando as chances de detecção da origem da contaminação. Um menor tempo para a identificação da origem da contaminação aumenta as possibilidades do controle de um surto e de diminuição do número de casos.
  4. Universalidade: a metodologia é a mesma para todos os patógenos e os laboratórios não necessitam de acreditações e validações, necessárias quando se empregam metodologias analíticas tradicionais. Essa universalidade tem benefícios em termos de tempo e custo.
  5. Facilidade de aprendizado e uso: o WGS é mais fácil de ser utilizado do que os métodos convencionais de tipagem, como sorotipagem ou eletroforese em campo pulsado (PFGE), por exemplo.
  6. Compartilhamento: o WGS tem uma “linguagem básica” universal, ou seja, é compreendido em qualquer país. Os dados gerados podem ser armazenados em repositórios e analisados e reanalisados em qualquer lugar, a qualquer momento.
  7. Flexibilidade e possibilidade de reanálise: No WGS, é possível utilizar várias plataformas analíticas de sequenciamento e bioinformática ao mesmo tempo. À medida que surgem novas tecnologias de sequenciamento ou novos métodos analíticos, é possível comparar dados históricos de sequenciamento com dados gerados por essas novas tecnologias, ou fazer outras análises usando as novas plataformas de bioinformática.
  8. Maior confiança nas tomadas de decisão: Como o WGS tem sensibilidade e especificidade altas, as decisões podem ser tomadas com mais confiança, tanto pelas autoridades relacionadas com segurança de alimentos e saúde publica, como pelo setor produtivo.
  9. O uso de WGS auxilia as autoridades sanitárias garantirem que estão seguindo acordos e práticas corretas de comércio internacional, o que aumenta a confiança no sistema nacional de controle dos alimentos existente em um país.

Como toda nova metodologia, o uso de WGS tem vários desafios a vencer:

  1. Custos do equipamento e consumíveis: embora estejam diminuindo, continuam ainda altos no Brasil, e proibitivos em muitas situações.
  2. Percepção dos custos: por ser uma metodologia nova e sofisticada, há a percepção do WGS ter um custo elevado, o que constitui uma barreira para sua implantação.
  3. Armazenamento de dados: o WGS gera grandes quantidades de dados, exigindo espaço físico e virtual, ou seja, custo para o armazenamento em repositórios locais. O armazenamento em repositórios globais exige um mecanismo muito bem controlado de compartilhamento de dados.
  4. Infraestrutura/Internet/Velocidade: a grande quantidade de dados gerados pelo WGS exige internet, acessível para todos os possíveis usuários.
  5. Uso dos dados: muitos laboratórios não têm acesso a bioinformatas bem treinados, dificultando o uso do WGS. As redes de conhecimento e plataformas on line ou parcerias com outros grupos mais experientes no uso dessa tecnologia podem ser de grande auxílio.
  6. Interpretação dos dados de WGS: mesmo com o uso das plataformas on line de bioinformática e genômica, a interpretação dos dados pode ser bastante complexa. O treinamento dos microbiologistas é critico na implementação dessa tecnologia.
  7. Sustentabilidade: se os benefícios socioeconômicos não ficam evidentes, o WGS pode não ser sustentável.
  8. Confiança: há muita discussão ainda sobre a propriedade legal dos dados públicos gerados pelo WGS. Há também muita preocupação dos geradores dos dados quanto ao seu uso final.

Para usar o WGS em um contexto de legislação, é preciso considerar outros pontos:

  1. Aspectos legais: em uma estrutura reguladora de segurança de alimentos, podem surgir questões de responsabilidade legal quanto ao uso dos dados do WGS, metodologias utilizadas, e harmonização e validação do método.
  2. Testes de proficiência: validações e certificações transparentes são indispensáveis para qualquer método analítico, inclusive WGS.
  3. Treinamento: para uso do WGS nas decisões, os reguladores necessitam estar treinados na tecnologia em si e também no gerenciamento dos dados gerados.
  4. Melhoria contínua: melhorias no WGS podem aprofundar as investigações sobre o comportamento dos microrganismos e sua relação com a segurança dos alimentos. Consequentemente, os programas de segurança de alimentos devem ser revisados regularmente, de forma a incorporar os novos conhecimentos gerados.

Quanto à indústria de alimentos, estimula-se a adoção do WGS para acompanhamento das medidas de controle, e para identificar fontes de contaminação antes desconhecidas, permitindo a constante atualização das Boas Práticas de Fabricação. Várias grandes empresas do setor, em vários países, já estão iniciando o uso do WGS para identificar fontes de contaminação em fornecedores de ingredientes e em nichos no ambiente de processamento.

A nível global, observa-se a formação de redes de WGS, como o GenomeTrakr, do Food and Drug Administration dos Estados Unidos, criado em 2012. Embora idealizado para rastreamento de surtos, o GenomeTrakr reúne e disponibiliza dados sobre resistência antimicrobiana, caracterização sorológica sem uso de anticorpos, e virulência de patógenos bacterianos e virais, coletados de pacientes, estabelecimentos e alimentos.

É evidente que há um grande progresso no uso do WGS no setor de alimentos e que essa tecnologia deverá substituir os métodos existentes para tipagem e caracterização de microrganismos. No entanto, ao selecionar WGS para o gerenciamento da segurança dos alimentos é preciso desenvolver normas de boas práticas de obtenção de dados e garantir a qualidade dos sequenciamentos. Antes de tomar alguma decisão com base nos dados do WGS, é necessário que as metodologias de obtenção dos dados e de análise desses dados sejam validadas, e que o acesso aos dados globais do WGS esteja assegurado.

Leitura adicional recomendada:

  1. Allard, M.W.et al 2016. Practical Value of Food Pathogen Traceability through Building a Whole-Genome Sequencing Network and Database. Journal of Clinical Microbiology 54(8), 1975-1983
  2. Allard, M.W, et al. 2018. Genomics of Foodborne Pathogens for Microbial Food Safety. Currrent Opinion in Biotechnology49:224–229
  3. 2016. Applications of Whole Genome Sequencing in food safety management. fao/org/3/a-i5619e.pdf
  4. https://www.fda.gov/food/science-research-food/whole-genome-sequencing-wgs-program
  5. Ronholm, J et al. 2016. Navigating Microbiological Food Safety in the Era of Whole-Genome Sequencing. Clinical Microbiology Reviews 29(4) 837-857.
  6. Wiedmann, M.https://www.foodsafetymagazine.com/magazine-archive1/junejuly-2015/use-of-whole-genome-sequencing-in-food-safety/