ILSI em Foco – fevereiro/2020 – Artigo

Cannabis na medicina: história, regulamentação e ciência

Gustavo Belchior, fundador e CEO da Core Us Consultoria e Comunicação Científica, biólogo, doutor em bioquímica

Nunca se falou tanto em Cannabis e do seu principal grupo de moléculas, os fitocanabinoides. De pesquisas básicas a investimentos agressivos em um mercado aquecido, o mundo todo procura entender de que forma faremos seu melhor uso. O ser humano vem interagindo com Cannabis há milênios, desde 10.000 AC. Na época, a humanidade formava os primeiros assentamentos e iniciava práticas agrícolas rudimentares, já com o cultivo de Cannabis sativa para obter fibras e grãos na Ásia Central.

Mas, o primeiro registro de uso para fins medicinais foi feito pelo imperador chinês Sheng Nung bastante tempo depois, em 2.700 AC. Ainda na China, o médico Hua T’o anestesiava pacientes com uma mistura de Cannabis e vinho antes de cirurgias abdominais. Conhecimentos realmente expressivos quanto a esse uso ressurgiram no século XIX, com enfoque no tratamento de tétano e convulsões e, no século seguinte, em um contexto científico mais avançado, o canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) – os fitocanabinoides mais abundantes e mais estudados até hoje – foram isolados e devidamente caracterizados, permitindo o melhor entendimento das moléculas que resultavam nos efeitos do uso de Cannabis – inclusive o psicoativo.

O THC é o principal responsável pelo “barato” casado pelo consumo de Cannabis para fins recreativos, ou “uso adulto”. Este tipo de uso, também milenar e cuja intenção é completamente diferente da medicinal, teve e tem um importante impacto sobre a legislação que rege as aplicações terapêuticas dos derivados da planta. No Brasil, as restrições tiveram início em 1964 sob influência da Convenção Única de Entorpecentes da ONU (Organização das Nações Unidas), três anos antes. Um decreto proibiu o plantio, cultivo e uso de Cannabis ou seus derivados para quaisquer fins, o que levou à inclusão da planta na Lista E (plantas proscritas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas) no final da década de 1990. Por outro lado, o CBD, que não tem propriedades psicoativas, ficou de fora da lista e passou à lista de substâncias controladas. Recentemente, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) avançou na aprovação de produtos derivados de Cannabis e na facilitação para que pacientes tenham acesso aos mesmos, via importação.

Mas, tão importante quanto entendermos os aspectos regulatórios é respondermos o seguinte: existe um racional científico para o uso de derivados de Cannabis?

Indo diretamente ao ponto, a resposta curta é: certamente!

Os fitocanabinoides interagem com o sistema endocanabinoide, um grande regulador de diversas funções em nosso corpo. Nós naturalmente produzimos nossos próprios canabinoides, que são as moléculas que se ligam a esse sistema para que ele funcione corretamente e nos mantenha equilibrados. Em doenças neurológicas (síndrome do espectro autista, dor crônica, epilepsia, esclerose e Parkinson), psiquiátricas (ansiedade, depressão e sociais) e geriátricas (demências), resultados de diferentes estudos têm mostrado a ação benéfica de THC, CBD e suas combinações em diferentes doses. Apesar do grau de recomendação variar entre as diferentes patologias, o importante é que estamos com níveis de evidências cada vez mais robustos para cada uma dessas aplicações, refinando nosso entendimento sobre doses, formas farmacêuticas e via de administração, farmacocinética e farmacodinâmica, e efeitos colaterais.

Como toda nova área de aplicação terapêutica, ainda existe muito espaço para melhoria de todos esses fatores. Precisamos ser eficientes e garantir um fluxo contínuo de conhecimento entre pesquisa básica, translacional e aplicada, além de uma boa harmonização entre academia, governo e indústria. Ainda, vale lembrarmos que cada indivíduo é único. Portanto, cada paciente responderá de uma maneira diferente se um mesmo tratamento medicamentoso for aplicado. Podemos, assim, levar em consideração que o uso medicinal de canabinoides poderá ter grandes avanços no médio/longo prazo ao se aproximar da medicina de precisão, entregando a pacientes soluções tailor-made.

O uso de Cannabis na medicina pode ser muito positivo. Um dos maiores desafios dessa promissora área está, sem dúvida, na intenção de uso sobre a qual falamos anteriormente. Insisto: uso medicinal é completamente diferente de recreativo. Criar espaço para sobreposições apenas atrasará a evolução para o tratamento de inúmeras patologias e o alívio do sofrimento de milhões de pacientes pediátricos, adultos e geriátricos. Que sejamos bons comunicadores do racional e das informações científicas que contribuirão para as melhores tomadas de decisão por parte de governos e da sociedade.

REFERÊNCIAS

Decreto no 54.216, de 27 de agosto de 1964. Presidência da República. (1964).

Mechoulam, R. (1970) ‘Marihuana chemistry’, Science, 168(3936), pp. 1159–1165. Available at: http://science.sciencemag.org/.

NASEM (2017) The health effects of cannabis and cannabinoids: The current state of evidence and recommendations for research. Washington, DC: The National Academies Press. doi: 10.17226/24625.

Pain, S. (2015) ‘A potted history’, Nature, 525, pp. S10-11. Available at: https://www.nature.com/articles/525S10a.pdf.

Portaria no 344, de 12 de maio de 1998. Ministério da Saúde. (1964).

Resolução da Diretoria Colegiada no 17, de 16 de abril de 2010. (2010).

Whiting, P. F. et al. (2015) ‘Cannabinoids for medical use: a systematic review and meta-analysis’, JAMA, 313(24), p. 2456. doi: 10.1001/jama.2015.6358.