ILSI em Foco – abril 2020 – artigo

Um breve histórico da avaliação do risco na dieta e como estamos hoje

Prof. Eloisa Dutra Caldas, Universidade de Brasilia

 

O homem está exposto a diferentes perigos presentes nos alimentos desde os primórdios da sua história, como bactérias e metais pesados. A partir do século XX, o uso de pesticidas para controle de pragas no campo e de aditivos alimentares para garantir certas características nos alimentos industrializados se intensificou, introduzindo novos perigos na dieta. Adicionalmente, várias substâncias formadas durante o cozimento dos alimentos podem representar riscos adicionais aos alimentos, como os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, substâncias genotóxicas e carcinogênicas que estão presentes naquele churrasco bem passado (Zelinkova et al., 2015).

A adulteração e a presença de “venenos” nos alimentos já eram uma preocupação das autoridades inglesas no século XIII, e a primeira lei para regular a produção e venda de alimentos foi estabelecida em  1266. Em 1850, o governo analisou vários alimentos e bebidas e concluiu que o consumo de alguns deles poderia fazer mal para a saúde, o que levou ao estabelecimento do Ato de Adulteração de Alimentos e Drogas em 1860 (Dawson, 2014). Outros atos para garantir a qualidade dos alimentos se seguiram pelo mundo, como na Austrália em 1854, na França em 1905 e na Holanda em 1919, que serviram de base para a legislação atual nesses países (Boisrobert et al., 2010).

In 1902, os resultados de um estudo conduzido nos EUA com voluntários saudáveis (o Pelotão do Veneno) para testar os efeitos dos conservantes de alimentos foram chocantes, e levaram à publicação em 1906 do Ato de Alimentos e Drogas (Food and Drugs Act), que serviu de base para a criação da Food and Drugs Administration (FDA, 2018). Em 1954, foram estabelecidos no país os procedimentos para o estabelecimento de limite máximo de pesticidas nos alimentos, ações que foram seguidas por outros países nas décadas seguintes, inclusive no Brasil.

Enquanto a presença de substâncias potencialmente tóxicas na dieta estava clara e existiam parâmetros para regular a questão, ainda era necessário procedimentos para responder à pergunta A exposição humana a substâncias tóxicas presentes na dieta representa um risco para a saúde humana? Esta resposta pode ser dada no âmbito da Avaliação de Risco.

Um marco nessa área ocorreu em 1983 com a publicação pelo Conselho Nacional de Pesquisa dos EUA do documento Risk Assessment in the Federal Government: Managing the Process, que teve como um dos objetivos uniformizar os procedimentos de avaliação de risco realizados pelas agências regulatórias americanas (NRC, 1983). Posteriormente, a FAO (Food and Agriculture Organization) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) publicaram o primeiro guia internacional para avaliação de risco da ingestão de pesticidas (WHO, 1987).

No processo de avaliação, o risco é função do perigo (harzard) e da exposição. Então, o potencial risco do consumo de um alimento contendo uma substância vai depender do quão tóxica é essa substância, de sua concentração no alimento e da quantidade do alimento consumida por um indivíduo ou população. Isto é, a presença de uma substância num alimento não necessariamente representa um risco para a saúde.

Se inicialmente a preocupação era a exposição crônica, isto é, ao longo de toda a vida, as bases para o estabelecimento da dose de referência aguda e o procedimento para avaliação do risco agudo, ou num período de 24 horas, foram construídos no final da década de 1990 pelo Joint Meeting on Pesticide Residues da FAO e OMS (JMPR), grupo de peritos responsável pela condução de avaliação de risco de pesticidas no âmbito internacional (JMPR, 1999). Mais recentemente, métodos para avaliar o risco da exposição a pesticidas durante um período intermediário que seja maior que 24 horas, mas menor que toda a vida, tem sido discutido pelo JMPR (2019).

Nos primórdios do desenvolvimento desse conceito, a avaliação de risco era feita separadamente para cada substância que possuía uma ingestão diária aceitável (IDA) estabelecida. Em 1986, a agência de proteção ambiental americana (EPA) estabeleceu as bases para a avaliação de risco da exposição a múltiplas substâncias com o mesmo mecanismo de ação tóxica (exposição cumulativa), estratégia que foi posteriormente adotada pelo IPCS (International Programme on Chemical Safety, 2009) e pela autoridade Europeia de segurança dos alimentos (EFSA, 2013).  Mais recentemente, a EFSA (2020) desenvolveu métodos para cumular pesticidas que exercem os mesmos efeitos tóxicos num órgão específico (como o cérebro ou a tireoide), independente do mecanismo de ação, possibilitando avaliar os riscos da exposição simultânea a um número muito maior de substâncias, o que reflete a situação real de exposição na dieta.

Os estudos de avaliação de risco são importantes para subsidiarem os gestores nas suas decisões regulatórias para garantir alimento seguro para a população, sem comprometer a disponibilidade de alimentos com preço justo.

 

Referências

Boisrobert CE, Stjepanovic A, Oh S, Lelieveld HLM, eds. Chapter 2 – Development of Food Legislation Around the World. Ensuring Global Food Safety. Academic Press, 2010.

Dawson S. History of UK food law. Food Science and Technology Sept 1, 2014.

EFSA (European Food Safety Authority). Scientific opinion on the identification of pesticides to be included in cumulative assessment groups on the basis of their toxicological profile. The EFSA Journal 11: 3293, 2013.

EFSA (European Food Safety Authority). Cumulative dietary risk characterization of pesticides that have acute effects on the nervous system. EFSA Journal 18(4):6087, 2020

EFSA (European Food Safety Authority). Cumulative dietary risk characterization of pesticides that have chronic effects on the thyroid.  EFSA Journal 18(4):6088, 2020

FDA (Food and Drug Administration). Milestones in U.S. Food and Drug Law History. https://www.fda.gov/about-fda/fdas-evolving-regulatory-powers/milestones-us-food-and-drug-law-history. 2018

IPCS. Assessment of combined exposures to multiple chemicals: Report of a WHO/IPCS International Workshop on Aggregate/Cumulative Risk Assessment. World Health Organization, Geneva. 2009.

JMPR (Joint Meeting on Pesticide Residues). Pesticide residues in food. Report. Chapter 3:  FAO Plant Production and Protection Paper. No. 153. FAO, Rome. 1999

JMPR (Joint Meeting on Pesticide Residues). Pesticide residues in food. Report. Chapter 2:  FAO Plant Production and Protection Paper. No. 234. FAO, Rome. 2019

NRC (National Research Council). Risk Assessment in the Federal Government: managing the process. National Academic Press, Washington, D.C.: 192pp. 1983

WHO (World Health Organization). Joint FAO/WHO Consultation. Food consumption and exposure assessment of chemicals.  Report of a FAO/WHO Consultation, Geneva, Switzerland. 10-14 February 1997.

Zelinkova Z, Wenzl T. The Occurrence of 16 EPA PAHs in Food – A Review. Polycycl Aromat Compd. 35:248-284, 2015