ILSI em foco #1/artigo

“Menos percepção de perigo, mais análise do risco”

Gustavo Gross Belchior, PHD, Fundador e CEO da Core US

Muitas de nossas escolhas são pautadas pelo que entendemos serem os perigos que nos cercam. Não seria hora de tomarmos decisões baseadas na análise do risco?

Quando éramos crianças pequenas, nossos pais buscavam nos alertar sobre as ameaças que estavam ao nosso redor: a tomada, o copo de vidro, a panela quente. Contudo, é natural da criança querer desbravar o mundo até que suas curiosidades sejam sanadas. Com isso, muitas vezes os alertas dos mais velhos não são suficientes e a experiência de uma leve queimadura na ponta do dedo acontece, tornando-se a melhor educadora.

A humanidade também vem passando por um processo de aprendizado em relação ao que se considera um perigo merecedor de atenção. Na pré-história, um simples corte na pele poderia evoluir para uma infecção grave devido ao entendimento sobre microrganismos causadores de doenças e práticas sanitárias estarem fora do domínio de nossos antepassados. Os hábitos e o conhecimento atuais são muito mais aprimorados e permitem um melhor acesso a informações que levam, de forma geral, a uma melhor qualidade de vida. Mas será que o nosso julgamento quanto a “perigo” está apurado o suficiente nos dias de hoje?

A campanha antivacina traz parte da resposta. Estima-se que entre 2 e 3 milhões de pessoas sejam salvas todos os anos por conta da administração de vacinas e que, se a cobertura global melhorar, podem ser somados 1,5 milhão de indivíduos a esse montante (1). Sendo assim, a vacinação é uma das formas de prevenção de doenças infectocontagiosas com a melhor relação custo-benefício. Contudo, uma onda de aversão a esta medida preventiva vem recentemente se alastrando. Apesar dos primeiros registros de movimentos contra vacinação datarem de 150 anos atrás (2), a hesitação à imunização tem ressurgido com intensidade principalmente nos Estados Unidos e Europa, mas também no Brasil (3). Suas causas são multifatoriais, mas sem dúvida o estudo publicado no renomado periódico The Lancet pelo médico inglês Andrew Wakefield e colaboradores resultou em um agravo da rejeição que se estende até hoje. O trabalho, que foi felizmente retratado pela revista, propõe uma possível associação entre a vacinação de crianças contra sarampo, caxumba e rubéola (a tríplice viral, MMR ou SCR) e distúrbios gastrointestinais, bem como uma regressão no desenvolvimento – principalmente Transtorno do Espectro Autista (4). A relutância ou recusa à vacinação chegou hoje a tal ponto que a Organização Mundial da Saúde a classificou como uma das dez maiores ameaças à saúde global em 2019 (1).

Um outro bom exemplo envolve um dos principais avanços da biotecnologia moderna: os transgênicos. A eles já se atribuiu desde o desenvolvimento de câncer a efeitos nocivos ao meio ambiente. Enquanto estudos com o devido rigor científico nunca estabeleceram uma verdadeira relação de causalidade entre a ingestão de transgênicos e malefícios à saúde, já existem metanálises trazendo mais de 20 anos de dados que indicam os diferentes benefícios que a biotecnologia pode proporcionar ao homem e o meio ambiente (5,6). Além de confusões envolvendo tecnicalidades, como o conceito do termo “OGM” (organismo geneticamente modificado), um bom grau de desinformação predomina entre a população leiga. Poucas pessoas saberiam dizer que a insulina, que é utilizada de forma segura e salva a vida de milhões de diabéticos em todo o mundo é feita por meio de transgenia. Talvez um número menor saiba que as enzimas que compõe sabões em pó e as que atuam na maturação de muitos tipos de queijos também foram produzidas por microrganismos transgênicos. E quanto às quase 300 variedades de batata doce naturalmente transgênicas que são tradicionalmente comercializadas há anos (7)? Será que o consumidor hesitou em comprá-las na feira onde estavam sendo vendidas?

Mas mais importante do que a percepção de periculosidade: existe de fato um alto risco?

É neste contexto que se faz importante a diferenciação entre os termos perigo e risco. Vamos utilizar a água potável para ilustrar essa diferença. De forma geral, podemos afirmar que há um senso comum de que hidratação é sinônimo de saúde. De fato, essa substância é o solvente “universal” que permite que milhões de reações bioquímicas possam acontecer nos seres vivos. Ela é, portanto, uma substância vital que, no caso de humanos, compõe aproximadamente 60% do nosso corpo (8). Assim, automaticamente assumimos que a água não é “perigosa” sem saber que ela pode de fato ser tóxica. Já existem casos bem conhecidos de intoxicação por água que ocorreram quando grandes quantidades foram ingeridas em um curto espaço de tempo. Isso pode acabar resultando em uma baixa concentração de sódio do sangue (condição denominada hiponatremia) e consequências que podem até levar a óbito (9). Ou seja, é a alta exposição à água (a dose) que pode resultar em malefícios a saúde, mas não a água em si.

É por esse motivo que, do ponto de vista científico, a análise do perigo é insuficiente para tomadas de decisão de qualidade quanto à aceitação ou rejeição de novos produtos ou procedimentos. Por outro lado, uma vez que o risco compreende o perigo e o grau de exposição a ele, sua avaliação passa a ser indicada como o caminho para melhores tomadas de decisão (10). Quando academia, indústria e governo consideram avaliação do risco de forma adequada, toda a cadeia de produção de conhecimento científico é beneficiada. Como consequência, o desenvolvimento tecnológico e os processos regulatórios que garantem o acesso seguro a inovações trabalham mais harmonicamente, aumentando as chances de aplicação prática desse conhecimento e retorno à sociedade.

Em meio à Era da Informação, é preciso cautela ao escolhermos o perigo elemento único dos nossos processos de decisão. Nesse caso, a análise criteriosa do risco tem se mostrado um melhor caminho.

 

REFERÊNCIAS

  1. WHO. Ten threats to global health in 2019. [Internet]. 2019 [cited 2019 Jun 1]. Available from: https://www.who.int/emergencies/ten-threats-to-global-health-in-2019
  2. Swales JD. The Leicester anti-vaccination movement. Lancet. 1992 Oct 24;340(8826):1019–21.
  3. Netto M. A vacina e seus descontentes. [Internet]. Revista Questão de Ciência. 2019 [cited 2019 Jun 1]. Available from: http://revistaquestaodeciencia.com.br/dossie-questao/2019/01/07/vacina-e-seus-descontentes
  4. Wakefield A, Murch S, Anthony A, Linnell J, Casson D, Malik M, et al. RETRACTED: Ileal-lymphoid-nodular hyperplasia, non-specific colitis, and pervasive developmental disorder in children. Lancet. 1998 Feb 28;351(9103):637–41.
  5. Pellegrino E, Bedini S, Nuti M, Ercoli L. Impact of genetically engineered maize on agronomic, environmental and toxicological traits: a meta-analysis of 21 years of field data. Sci Rep [Internet]. 2018 Feb 15 [cited 2018 Nov 6];8(1):3113. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29449686
  6. ISAAA. Global Status of Commercialized Biotech/GM Crops: 2017. ISAAA Brief No. 53. 2018. Internationl Service for the Acquisition of Agri-Biotech Applications.
  7. Kyndt T, Quispe D, Zhai H, Jarret R, Ghislain M, Liu Q, et al. The genome of cultivated sweet potato contains Agrobacterium T-DNAs with expressed genes: An example of a naturally transgenic food crop. Proc Natl Acad Sci U S A [Internet]. 2015 May 5 [cited 2019 Apr 26];112(18):5844–9. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25902487
  8. USGS. The Water in You: Water and the Human Body [Internet]. [cited 2019 Jun 1]. Available from: https://www.usgs.gov/special-topic/water-science-school/science/water-you-water-and-human-body?qt-science_center_objects=0#qt-science_center_objects
  9. Mayo. Hyponatremia – Symptoms and causes [Internet]. [cited 2019 Jun 1]. Available from: https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/hyponatremia/symptoms-causes/syc-20373711
  10. Smyth SJ, Phillips PW. Risk, regulation and biotechnology: The case of GM crops. GM Crops Food. 2014;5(3):170–7.